terça-feira, 14 de outubro de 2008

Crevatolf - cap. 20

Passamos o começo da tarde enchendo uma das máquinas voladoras de todo tipo de suprimento que achamos. Mas não havia quase nenhum ingrediente para levar. Quando terminamos, procuramos Grigrapreti: queríamos uma refeição, antes de partir.

- Já está sendo providenciada - ele disse, quando o encontramos. - Haverá mais uma pessoa presente...

Eu o reconheci, imediatamente, apesar de não saber seu nome. Tínhamos conversado diversas vezes, quando ele ainda era nosso prisioneiro na cidade de metal.

Ele se chamava Grebrerão.

Cumprimentou-nos com certo agradecimento no olhar, e percebemos rapidamente que ele estava bem melhor do que quando foi capturado na floresta sempre-viva.

- Nunca tive a estrutura mental para lhes agradecer quando me soltaram. - ele disse, se curvando. - Faço isso agora!

Sentamo-nos e começamos a comer. Ele apenas nos observava.

- Vão querer saber o que eu vi lá... - ele disse, após alguns instantes. Demo-nos conta de que a pergunta estava em nossas bocas, mas não achávamos meio de formulá-la.


Estão todos mortos... Nós os atravessamos com lanças e facas, mas não corria sangue em suas veias. No auge do desespero, alguns de nós morderam o exército de condenados. Contraíram doenças terríveis por isso.

Mesmo quando moíamos seus corpos com porretes, eles continuavam a se mover. Alguns não eram mais do que poças putrefatas no chão. O exército da morte, conquistando tudo ao seu redor.

Um dia - meus olhos ainda ardem ao lembrar - entramos num descampado. Nossos pés levantavam pequenas nuvens de poeira ao andar. Quando chegamos ao meio do descampado - sem que houvesse nenhum vento! Sem nenhuma maldita brisa! - todo o pó se levantou, em rodopios! Ele nos envolveu, entrando em nossas fossas nasais, em nossos olhos e bocas, nos nossos poros amaldiçoados! O pó, em nossas bocas, sabia a cinzas e suor. Vi todo meu batalhão cair e corri para longe. Para minha sorte, achei um rio e me joguei nele. Juro ter ouvido um suspiro de lamentação quando o pó que me cobria se desprendeu de meu corpo e foi levado pela água. Fiquei ali embaixo da água por todo o tempo que pude - dois, três dias, talvez. Sempre que pensava em sair, temia o solo seco.

Foi assim que fui encontrado e mandado embora dali.


Um fio de baba escorria-lhe pelo canto da boca. Ele estava estupefato pelas lembranças. Deixamos Greberão em paz. A noite já caía.

Fomos para nosso quarto. No início da madrugada, Prosfrus nos chamou, um a um.

O caminho até as máquinas voladoras estava sem nenhuma vigília. Entramos na máquina que havíamos carregado e Prosfrus puxou com força a corrente que deveria acionar o mecanismo.

O grande rolimã na ponta do ovo se moveu, fazendo as tiras flexíveis rodarem de forma engraçada, como um polvo nadando em círculos. Ajudamos Profrus a puxar a corrente e, da segunda vez, o rolimã começou a rodar com velocidade. As tiras abriram-se como hélices, depois se curvaram para trás envolvendo o ovo e uma sensação de desequilíbrio nos fez perceber que flutuávamos.

Passamos por cima das muralhas de vidro um instante depois. Bea e eu estávamos exaustos e acabamos dormindo, enquanto Prosfrus fazia a máquina se dirigir para o sul.

segunda-feira, 6 de outubro de 2008

Crevatolf - Cap. 19

No começo de nosso terceiro dia na cidade, acordamos com uma agitação tensa. Saímos da ala de convidados da casa central e andamos até os escritórios oficiais. Ouvíamos choro e raiva lá fora. Tememos que a resposta de TayFor tivesse chegado e não fosse favorável a nós mas, para nossa surpresa, aconteceu o contrário, de certa forma.

Fomos recebidos por Grigrapreti com um sorriso amarelo e ansioso. O metagorfo que víramos partir, três dias atrás, descansava no fundo do salão onde o líder dos bugrerões nos recebeu.

- Estamos reunindo um esquadrão para acompanhá-los. - Grigrapreti disse. - TayFor pediu que os ajudássemos.

Nós trocamos olhares. O bugrerão continuou.

- Devo assumir que não é tarefa fácil. Nenhum dos nossos quer ir para lá, depois que os poucos sobreviventes voltaram, enlouquecidos pelo que viram. Nossa tribo costuma ser de gente valente, mas o que se enfrenta no sul não é natural...

- E o que você pode nos oferecer de transporte? - perguntou Prosfrus.

- Máquinas voladoras.

Eu nunca tinha ouvido falar nelas e, pela expressão de dúvida no rosto de Bea, percebi que ela também não. Mas Prosfrus e Trestede pareciam empolgados.

Então Prosfrus sugeriu que fôssemos ver as máquinas, acompanhados de Trestede. Ele ficou com Grigrapreti.

As máquinas voladoras eram do tamanho de um elefante. Haviam várias e percebemos que cada uma poderia levar cinco pessoas. Lembravam ovos de vidro, deitados, mas, na parte da frente do ovo, presos a uma espécie de rolimã, várias tiras de um material estranho, que lembrava lona, tombavam até o chão. Através do vidro, víamos diversos mecanismos interligados, além das cadeiras para que os passageiros sentassem.

Depois de alguma tempo, Prosfrus voltou a se juntar a nós.

- Partimos hoje a noite... - ele disse. - Tudo o que precisamos será colocado em uma das máquinas.

Eu estava reflexivo.

- Acha uma boa idéia esse esquadrão de bugrerões nos acompanhar, Prosfrus?

Ele respondeu, sisudo:

- Vamos partir sozinhos.

Crevatolf - Cap. 18

As Terras de Fogo haviam sido uma grande floresta, há muito tempo atrás. Mas os bugrerões haviam devastado tudo, enchendo o solo de minérios incandescentes. A floresta queimou e a terra fervia, formando rios de minerais derretidos, que os bugrerões utilizavam para soprar em maravilhosos vitrais.

Ainda assim, era difícil pensar em todas as árvores que haviam sido carbonizadas para isso.

Depois de andar por dois dias, vimos as imensas esculturas de vidro que circundavam Quatores. A fumaça da terra escaldante cobria o céu de nuvens plúmbeas que contrastavam com a vermelhidão do solo.

Era hora de saber se a bandeira nos fornecida por TayFor valia alguma coisa: os bugrerões eram conhecidos por sua agressividade e lealdade ao primeiro vizir.

Caminhamos pela estrada até a muralha de vidro, que era feita de tal forma que fazia os guardas parecerem monstros gigantescos a quem os observava de fora. Levantamos alto a bandeira e pudemos perceber os vigias se entreolhando.

- A comitiva da cidade de metal! - um deles exclamou, para nosso alívio. No entanto, o silêncio que se seguiu nos deixou ansiosos.

Por fim, o guarda voltou a falar:

- Onde estão os outros?

- Somos só nós, agora... - disse Trestede. - E precisamos de alguma ajuda.

Outro silêncio se seguiu, até que os portões se abriram. Prosfrus e Trestede entraram primeiro. Em seguida, entramos Bea e eu. Os bugrerões nos cercaram, mas sentíamos mais curiosidade do que animosidade neles.

Fomos levados à casa central, onde o líder morava, e tivemos que contar nossa história. Poucos instantes depois, eu vi um metagorfo voar pela janela e tive certeza de que TayFor estava sendo avisado do que estava acontecendo.

Prosfrus também percebeu e resolveu ir direto ao assunto, solicitando, o mais humildemente que podia, comida, montarias e ingredientes.

Mas Grigrapreti, o senhor dos bugrerões, fez questão que passássemos a noite para descansar.

No final do segundo dia, percebemos que teríamos que ficar lá até que o metagorfo voltasse: não éramos prisioneiros, mas nada nos era oferecido que possibilitasse que continuássemos a viagem. Trestede chegou a questionar Grigrapreti, que respondeu que eles estavam providenciando o que precisávamos.

Reunidos, à noite, resolvemos testar a sorte: esperaríamos o mensageiro voltar.

sábado, 4 de outubro de 2008

Crevatolf - Cap. 17

Quando chegamos ao meio do planeta, éramos só cinco: Bea e eu, Trestede, Prosfrus e Tula, nos céus.

A cada dia uma nova disputa nos separava mais: um grupo dos plurinogorfos vendeu os crocofantes restantes para mercadores de animais escravos. Os plurinogorfos excluídos da transação discutiram e, de alguma forma, tudo acabou sendo nossa culpa.

E encontramos mais desejo espalhado por todos os cantos.

Para Trestede, era uma magia de cobiça, o que parecia fazer sentido. E o mandante começou a nos parecer óbvio: TayFor.

Os mágicos e os plurinogorfos discutiram por reconhecimento. Os últimos cornocorpóreos ficaram cheios e resolveram voltar para a floresta sempre-viva.

Um certo dia, todo o suprimento restante de ingredientes para magia desapareceu, junto com três dos mágicos. Por sorte, Bea e Trestede haviam enchido seus estoques pessoais. Mas ainda assim, não era suficiente para um feitiço de detecção, nem para um contra-feitiço.

Certa manhã, quando eu e Bea acordamos, todos haviam partido. Prosfrus, durante a noite, havia mandado os plurinogorfos voltarem para a cidade de metal. Trestede havia feito o mesmo com os dois mágicos que ainda estavam conosco.

- Eles iam acabar se engalfinhando. - disse Trestede. - Por mais que o feitiço possa estar afetando a nós quatro, ainda estamos juntos...

Com relutância, concordamos. Mas não era possível continuar a pé. Nem havia mágica o suficiente para nos fazer voar até o sul.

Até então, vínhamos buscando caminhos isolados, sem passar por cidades, para evitar os espiões de TayFor. Naquele dia, resolvemos desviar um pouco o curso e passar por Quatores, a imensa e escaldante cidade no centro do que conhecíamos como as Terras em Chama.

quinta-feira, 2 de outubro de 2008

Crevatolf - Cap. 16

Gabel retomou a palavra:

- Não podemos perder mais ajuda... - ponderou Prosfrus.

- É algo mágico... - falou Bea. - Precisamos descobrir que feitiço é esse e quem está sob seu efeito, para quebrá-lo.

- Ainda tem ingrediente o suficiente para uma magia de detecção? - perguntou Prosfrus.

Não havia.

Assim, tivemos que optar por questionar os mágicos, como queria Trestede.

Foi desastroso.

Enquanto todos se acusavam mutuamente, descobrimos que nenhum deles tinha qualquer ingrediente consigo.

Isso só aumentou a discussão e logo os plurinogorfos foram envolvidos. Parte dos mágicos os acusaram de ter vendido os ingredientes.

Alguns sugeriram que haviam sido os humanos, mas Trestede garantia que ele mesmo inspecionara os tonéis depois que os humanos foram embora.

Nada foi resolvido naquela noite.

Quando acordamos, no dia seguinte, a maior parte dos cornocorpóreos e dos crocofantes havia desaparecido. Só restavam uss poucos que dormiam mais afastados do grupo maior.

Havia uma testemunha: um dos cornocorpóreos. Com ajuda dos plurinogorfos, que se comunicavam com esses animais, soubemos que, durante a noite, um gigante com um grande chapéu havia aparecido no campo e polvilhado algo nos animais. Depois, todos haviam seguido o gigante, como se ele fosse a melhor comida que já houvesse sido oferecida.

Ao investigar o campo, descobrimos Desejo espalhado pela grama. Alguém havia enfeitiçado os animais.

- Foi a Morte! - eu disse, reconhecendo o gigante de meu sonho na descrição do cornocorpóreo.

- Não diga besteira... - disse Prosfrus. - A morte não é um gigante de chapéu, é uma mulher...

terça-feira, 30 de setembro de 2008

Crevatolf - Cap. 15

Naquela noite, resolvi tentar um encanto de detecção de magia. - Contou Bea.

Pedi a Trestede que me ajudasse e, assim que o sol se escondeu, fui até nossas reservas de ingredientes mágicos. Abri o tonel de luz, o elemento mais necessário para magias desse tipo e, para minha surpresa, ele estava quase vazio. Havia tão pouca luz lá dentro quanto na noite que nos cercava.

Aquilo me assustou. Corri para os outros tonéis. O de desejo ainda estava cheio, até o tampo, mas o de tempo também estava quase no final.

Trestede quis reunir imediatamente os mágicos, mas eu preferi conversar com Prosfrus e Gabel, primeiro. Queria incluir Prosfrus para melhorar o mal-estar da tarde.

Sentamo-nos em volta de uma fogueira e tentamos pensar.

- Há um sabotador... - sugeriu Trestede.

Prosfrus se inquietou:

- Conhecemos essas pessoas há muito tempo...

- Também conhecíamos os humanos... - reagiu Trestede. Prosfrus se calou.

Mas Gabel (eu ainda não sabia de seus sonhos) tinha outra teoria:

- Alguém pode estar influenciando, corrompendo nossos aliados.

- Quem? - perguntou Trestede. - E como?

- A Morte? Através dos sonhos? - Gabel respondeu, inseguro.

- Você acha que a Morte está tentando fazer o mesmo que Los? - perguntou Prosfrus.

- Vamos com calma... - interveio Trestede. - A Morte não tem interesse em outro reino, ela tem o reino dela...

A discussão se acirrou. Eu coloquei panos quentes, desviando o assunto para o roubo de suprimentos. Agora sei que deveria ter prestado mais atenção. Mas, naquele dia, achei que Gabel se deixara levar pela imaginação.

domingo, 28 de setembro de 2008

Crevatolf - Cap. 14

Naquele momento fui tragado de volta ao mundo desperto pelos gritos de uma discussão. Os mágicos disputavam entre si sobre quem deveria se encarregar das provisões de luz, tempo e desejo que trazíamos. Eram como crianças, se acusando e, aos poucos, nos acusando de privilegiar um ou outro.

- Você ficou entre os dois príncipes por toda a viagem!

- Sim! Porque eles me preferem e confiam em mim!

- Isso é ridículo! Porque você os bajula todo o tempo! E tenho certeza de que os está espionando!

Nesse ponto, começaram a se empurrar e Bea teve que interceder. Mas nem houve tempo de acalmarmos os nervos, pois ouvimos os cornocorpóreos guinchando.

Tinham fome. Os crocofantes haviam avançado em sua comida durante a noite.

Percebemos que, após a partida dos humanos, ninguém havia lembrado de alimentá-los. Os plurinogorfos reclamaram da nova tarefa: não eram sua montaria. Os crocofantes se irritaram: não eram apenas montarias!

Bea me chamou a um canto, puxando também Trestede.

- Há algo errado aqui...

Lembrei imediatamente do homem nos meus sonhos, mas não tive coragem de dizer nada. A imagem do gigante, em minha mente, parecia frágil, esvaindo-se, como é comum ao despertar.

- Acha que é algum tipo de feitiço? - Trestede perguntou.

Antes que Bea pudesse responder, percebemos que Prosfrus nos olhava ao longe. Nós o chamamos, mas ele virou as costas e juntou-se ao grupo dos plurinogorfos que alimentavam crocofantes e cornocorpóreos.

- Seja lá o que for, parece estar afetando Prosfrus também... - eu concluí.

sábado, 20 de setembro de 2008

Crevatolf - Cap. 13

No sonho, eu estava sozinho em frente a um imenso muro que se estendia até se perder de vista. Atrás de mim, sons de guerra me davam a impressão de perigo constante. Cada um dos que nos acompanharam ao sair da cidade de metal estava agora morto.

Mas, no sonho, eu achava que minha irmã ainda estava viva, só que do outro lado do muro.

Eu tentava achar uma passagem. Cravei as unhas na terra cinzenta que cobria o muro até que minha mão estivesse coberta de sangue.

E a guerra chegava, cada vez mais perto.

Então, ouvi o som de música. Ela vinha do outro lado do muro. Lá estava um homem com um longo casaco marrom avermelhado. Ele era muito alto - gigantesco, mesmo - e um grande chapéu cobria sua cabeça.

Eu podia vê-lo, através do muro, mas não podia alcançá-lo.

Ele levantou a cabeça e olhou em meus olhos. E eu soube que as cordas do instrumento que ele tocava eram feitas dos cabelos de minha irmã.

Ele sorriu para mim, e seus dentes eram amarelos como gemas de ovos.

- O que você quer? - ele me perguntou, depois de um silêncio no qual senti crescer meu ódio por ele.

- Quero minha irmã! - respondi, aos gritos.

- Desculpe, eu não consegui ouvi-lo... - ele respondeu, sarcástico, e meu ódio aumentou.

Ao seu lado, agora, estavam os homens que haviam nos abandonado. Em pé, olhando para mim e, ainda assim, mortos. Não havia nenhuma vida em seus olhos.

E quando todos eles sorriram para mim, seus dentes eram amarelos como gemas de ovos.

terça-feira, 16 de setembro de 2008

Crevatolf - Cap. 12

Gabel tomou a palavra:

- Conheço essa parte da história melhor que você. - disse à irmã.

Seguimos por cerca um mês, utilizando trilhas antigas que Prosfrus e Trestede conheciam bem. O clima ficava cada vez mais úmido, à medida que nos encaminhávamos para a parte central do planeta. O primeiro impacto que percebemos foi a moral de nosso grupo: quando saímos da cidade de metal, os soldados pareciam dispostos a ir para guerra, animados com a perspectiva de fazer parte da História. Mas, à medida que escalávamos o planeta, começaram a surgir reclamações. O desconforto das acomodações, o gosto da comida, as montarias.

Por fim, numa manhã, quando levantamos acampamento, percebemos que dois crocofantes estavam sem seus humanos. Eles haviam desertado durante a noite.

Prosfrus foi duro com a memória dos homens. Diminui-os e achincalhou-os. Para sua surpresa, os outros homens evitavam olhá-lo. Suas expressões eram frias e de desagrado. Os outros plurinogorfos perceberam e começou uma discussão séria, selvagem, que não custaria muito a passar para o ato físico...

Trestede, com sua habitual diplomacia, conseguiu, enfim, interromper a discussão e deu a palavra aos homens, para que dissessem o que os desagradava.

- Não sabemos se acreditamos nas profecias... - disse um jovem ruivo, que parecia ter tomado a liderança dos humanos. - Não sabemos quem é o verdadeiro rei de Paraíso. O passado é história. O verdadeiro rei é quem está sentado no trono.

Não pude ficar quieto:

- Não é só uma questão de direito. - eu argumentei - TayFor quer reinar sozinho, enquanto que nossa família sempre ouviu e respeitou a voz de todos.

- Ele não governa sozinho! - disse o ruivo - Apenas sem vocês, o que é completamente diferente. No mais, o que aconteceria se alguém quisesse se tornar rei? Vocês o ouviriam? Deixariam o trono, se essa fosse a vontade da maioria?

A discussão recomeçou e seguiu por horas. Seu término cindiu o grupo: os 27 soldados humanos que partiram conosco da cidade de metal abandonaram o grupo para se unir aos exércitos de TayFor, com nossa anuência. Os 23 plurinogorfos e os 5 mágicos continuaram conosco, assim como os crocofantes e os cornocorpóreos.

Naquela noite, sonhei pela primeira vez com o homem com chapéu de abas largas.

domingo, 14 de setembro de 2008

Crevatolf - Cap. 11

Uma semana levaram os preparativos para a viagem. Foi uma semana tensa para todos. Dois crocofantes foram selecionados, dentre os mais robustos, para nos auxiliar com as provisões. TayFor havia nos dado uma bandeira para que mostrássemos a qualquer de suas patrulhas que nos interpelasse, dentro ou fora dos muros.

- Mas não posso garantir que ninguém dentro dos muros respeite a minha palavra... - disse o primeiro vizir.

Assim, antes do amanhecer do oitavo dia, o grande portão de metal se levantou e saímos em comitiva. Trestede e Prosfrustrede nos acompanharam, assim como Fedoes. Além dos três, vieram cerca de 50 soldados, entre humanos - montados em crocofantes - e plurinogorfos - que cavalgavam cornocorpóreos. Carregavamos bom estoque de desejo, luz e tempo, que poderiam ser usados por mim, por Fedoes ou por alguns dos 5 outros mágicos que vieram conosco.

Apesar de querermos acreditar na palavra de TayFor, ficávamos em vigília, preparados para nos defender. Tínhamos um observador constante, que deveria voltar para a cidade de metal imediatamente, se fóssemos atacados: era Tula, a uruguia que havia conduzido Viramundo em sua vitória no portão de Borboreal.

Naquele instante, Hopo olhou para o céu. Lá estava ela, sobrevoando suas cabeças, tão alto que parecia uma minúscula cruz negra cortando o branco espaço do Sul de Paraíso. Eles já se conheciam e o metagorfo devia a vida à uruguia. Sorriu ao pensar que havia sido salvou por uma verdadeira heroína, e não por uma ave covarde e estúpida qualquer.

O frio ainda castigava o quarteto, na neve lá embaixo. Hopo não tinha idéia de que, ao saírem da cidade de metal, eles eram tantos.

Quando se conheceram, eram apenas Bea, Gabel e Tula. Ele entendia que a Zona Murada podia dizimar exércitos inteiros, mas não queria acreditar que todos aqueles heróis que tinham enfrentado Los e feito parte da história haviam...

Não teve coragem de completar o pensamento, muito menos de expressá-lo. Melhor era ficar quieto. E deixar Bea continuar a história.

Avançamos pela floresta sempre viva, observando as barracas do exército de TayFor se aproximarem. Fomos vistos pelos vigias nas torres e o ar se encheu com os sons altos, graves e fanhos dos didgeridoos.

Quando, enfim, saímos da floresta, todo o exército inimigo estava perfilado, deixando caminho para que passássemos. Trestede segurava o estandarte com a bandeira de paz bem alto, e notei que sua mão tremia com o estresse. O corredor nos levou até Pito, que estava em pé, próximo à barraca principal. Ele nos saldou e retribuímos. Percebemos que ele estava escolhendo suas palavras:

- O... [pigarro]... O rei... - e nos olhou de soslaio, mas diante de nosso silêncio, continuou. - O rei deixou seu... - nova pausa, novo olhar desconfiado - ...seu castelo à disposição da comitiva... Caso vocês queiram passar por Éden a caminho do Sul.

Éden, a cidade onde nascemos. E o castelo que o metagorfo se referia era o castelo de meus pais. Mas mantivemos nosso silêncio.

- Já sabem que caminho farão?

- Prefirimos seguir por outras vias. - disse, com uma voz de trovão, Prosfrus. - E precisamos ir, pois temos um planeta a atravessar.

Foi quando me dei conta do fato: estávamos no extremo norte do planeta, próximos a Borboreal. Crevatolf ficava quase no pólo sul. Seria uma viagem longa.

quinta-feira, 11 de setembro de 2008

Crevatolf - Cap. 10

O silêncio imperou duro por alguns momentos. Claro: a Morte até então era um conceito metafísico. Tínhamos nossas diferentes religiões e, de certa forma, a maioria de nós acreditávamos que 'a entrada da casa da morte' era uma metáfora. Eu mesma nunca havia pensado que ela teria uma casa, no sentido concreto da palavra.

Ninguém sabia como reagir. Grande parte de nossos aliados pensou que TayFor havia enlouquecido. Outra parte da população da cidade temeu que fosse uma armadilha. Uma história para minar nossas convicções.

Para mim e para Gabel, não mudava os fatos: queríamos e precisávamos ir ao portão. Mas o pensamento de enfrentar os mortos não era agradável, principalmente para Gabel, que havia morado na Terra, onde as lendas sobre mortos-vivos eram comuns.

Ou era uma farsa muito bem feita, ou TayFor e Amereida estavam realmente assustados, pois, quando exigimos que ela ficasse como refém, ela aceitou imediatamente.

O primeiro vizir relutou, mas acabou concordando. Ele confiava em nós mais do que nós nele. Os termos eram simples: ela seria solta quando estivéssemos de novo dentro dos portões. Ela seria bem tratada e nós teríamos salvo conduto até dentro dos muros.

Mas ninguém do lado de TayFor nos ajudaria. Nem que ele ordenasse. Ninguém de seu exército aceitaria voltar para o sul até que o portão estivesse fechado.

domingo, 7 de setembro de 2008

Crevatolf - Cap. 9

Os portões da cidade foram abertos e a pequena comitiva entrou. A maioria dos nossos aliados ficou boquiaberta ao ver o primeiro vizir, ali. Bumarunos foi o primeiro a dirigir a palavra a ele:

- Muito corajoso de sua parte vir aqui, posto que ainda não aceitamos sua trégua.

TayFor encarou o crocofante sem medo, mas respeitosamente.

- Há coisas mais importantes que nossa guerra, comandante. - ele disse - E a situação no sul é uma dessas, certamente.

Os três foram guiados até o túmulo de Viramundo, que o primeiro vizir observou com curiosidade. Não conhecera o herói, mas admirava seus feitos. Observou seu rosto infantil, através do vidro que cobria o túmulo, sob o pedestal. Disse uma palavra que quase ninguém ouviu.

Mas o crocofante, que estava ao seu lado, escutou-a e surpreendeu-se. Mais tarde, Bumarunos nos contou: a palavra do primeiro vizir fora "obrigado".

TayFor parecia realmente cansado. Perguntei-me se era da guerra ou do poder. As histórias que ouvíamos a seu respeito, de antes do golpe, mostravam-no como um homem justo e humilde. E, longe do palácio de Paraíso, era assim que ele se portava.

E, no entanto, isso não mudava o fato dele ter usurpado o trono e tentado matar minha mãe.

Sentamo-nos, todos. No círculo central, TayFor e a esposa estavam frente a frente com Bumarunos, Fedoes, Prosfrustrede e Trestede. Logo atrás do casal, sentou-se Pito. Meu irmão e eu sentamos um pouco mais distantes, mantendo nossa identidade incógnita: éramos apenas mais dois humanos misturados à multidão.

As negociações começaram. Trestede expôs nossas condições e TayFor expôs as dele. Nessa hora, vi o brilho da cobiça voltar a seu olhar. Ele se recusou a falar sobre devolver o trono ou sobre o fim da guerra. Mas afirmou que não havia mais exércitos seus no sul que pudessem ser usados contra a cidade de metal.

- Não há mais nada lá. Muramos toda a região e temos alguns postos de vigia. Ainda há luta entre alguns poucos batalhões que permaneceram dentro dos muros... Mas nenhum deles vai ser fiel a mim, depois de levantarmos as paredes e prendê-los lá dentro... E duvido que algum deles ainda mantenha sua sanidade mental...

- Afinal, o que está acontecendo lá? - perguntou Prosfrus.

- Tem a ver com o portão... - disse Amereida, numa voz doce que contrastava com a firmeza da voz do marido. - O portão da casa da morte...

- Não sabemos ao certo... - disse o primeiro vizir. - Mas a nossa conclusão foi que...

Ele refletiu, algum tempo, ponderando sobre o que ia dizer.

- Os mortos escaparam do reino da morte pelo portão aberto...

sábado, 6 de setembro de 2008

Crevatolf - Cap. 8

Reunidos na praça em frente ao túmulo de Viramundo, os moradores da cidade de metal cochichavam entre si, enquanto uma imensa expectativa enchia o ar. Prosfrus e Trestede ficaram conosco, tentando fazer o papel de 'advogado do diabo' frente à nossa certeza do que deveria ser feito.

- A questão não é simplesmente ir até lá. Precisamos pensar no depois. - afirmou Trestede. - Se o primeiro vizir puder deslocar todo seu exército para cá, será que temos chance?

- Eu entendo o que você diz... - meu irmão ponderou. - E, no entanto, até quando ficaremos nesse impasse? A ida até Crevatolf não é simplesmente para fechar o portão. Algo mais deve acontecer. Vamos encontrar nosso pai...

- As profecias não são exatas... - disse Prosfrus. - E se o primeiro vizir estiver manipulando as coisas em direção a outro fim?

- A alternativa - eu ponderei - é ficar aqui, sentado em cima do traseiro, esperando algo que não aconteceu nos últimos três anos e não vai acontecer, pois as condições não vão mudar. Mesmo que saiamos às escondidas, assim que o portão for fechado o primeiro vizir vai saber.

- Então não feche o portão... - sugeriu Prosfrus. - Retorne com seu pai mas deixe a situação como está. A profecia não diz que é necessário fechar Crevatolf. Diz apenas que 'os portões vão estar de novo sob controle'.

- E, no meio tempo, vamos exigir do primeiro vizir algo que ele ame, como garantia de que vocês não serão feitos prisioneiros ou coisa que o valha, até que retornem...

Assim, naquela noite, transmitimos nossas idéias ao povo reunido na praça,que foi aceita por unanimidade.


Três dias depois, a floresta abriu caminho para três pessoas: Pito, o metagorfo, vinha acompanhado do primeiro vizir e de sua esposa, Amereida. Os cabelos da humana eram tão longos que se arrastariam no chão, se não fossem protegidos pelo longo véu que trazia preso à cabeça.

Ela era cega, mas o primeiro vizir a conduzia como se fosse uma dança de salão: a mão direita dela por sobre a esquerda dele, os braços levemente estendidos à frente, passos sincronizados.

O primeiro vizir - TayFor era seu nome - cuidava para que nenhuma pedra atrapalhasse o caminho da amada, manipulando um grande cajado com a mão direita.

Era uma imagem bonita, os dois caminhando juntos. Transmitiu-me amor, se posso dizer. Não pude deixar de ter menos ódio de TayFor. E, ao olhar para Prosfrus, já sabia quem ele exigiria que ficasse conosco, como refém.

quarta-feira, 3 de setembro de 2008

Crevatolf - Cap. 7

As coisas começaram a mudar quando soltamos o bugrerão. Percebemos que ele não tinha condições de lutar e que era seriamente perturbado. Gritava ao ficar no escuro e se recusava a tocar qualquer coisa suja. A maior parte do tempo, chorava, suplicando por paz. Mas temia a morte acima de qualquer coisa e ao ouvir a palavra, choramingava "eu não quero voltar, eu não quero voltar!". Nos poucos momentos de lucidez que teve enquanto era nosso prisioneiro, pediu para ir para casa, morar com a filha.

Nosso coração falou mais alto e acabamos deixando-o partir.

Um mês depois, um pequeno metagorfo foi trazido à cidade, com o selo dos mensageiros estampado no corpo. Ele queria saber se era verdade que os príncipes haviam voltado para Paraíso e, caso fosse, o primeiro vizir desejava uma trégua para falar com eles.

A cidade se reuniu. Bumarunos, um crocofante pesado e velho, que comandara diversas esquadras nas batalhas em Borboreal, foi o primeiro a falar. Seu couro já havia perdido o verde e se tornado cinza prata e, da imensa boca, os dentes irregulares mostravam-se gastos.

- Minha sugestão é que façamos ensopado de metagorfo... - disse, zombeteiro, fazendo os crocofantes gargalharem e o pequeno metagorfo, cujo nome era Pito, estremecer. Fedoes, um humano que parecia ser o porta-voz dos mágicos, acalmou Pito, mas indagou os motivos do primeiro vizir.

- O rei quer... - começou a responder Pito, e não conseguiu mais falar. Agora, o ódio era real e qualquer bom humor se transformou em vaias, gritos e ameaças. O primeiro vizir não era rei de Paraíso. Bumarunos exigiu que, a partir daquele momento, Pito se referisse a ele como 'o usurpador'. E Pito não teve escolha, senão acatar.

- O 'usurpador' - disse, temendo sua própria voz - quer negociar uma trégua para que os príncipes possam fechar Crevatolf...

E isso era tudo o que o mensageiro sabia.

- Volte em três dias - disse Fedoes (e era engraçado o conceito de dia, posto que naquela parte do fim do mundo, e sob influência de Borboreal, não tínhamos realmente uma noite...; mas sabíamos que Fedoes se referia a três períodos de vigília-descanso...) - e lhe daremos uma resposta.

Enquanto o metagorfo desaparecia na floresta, sempre parecendo apavorado, eu olhei para meu irmão e sabíamos o que defenderíamos: a trégua era necessária para que a profecia se concretizasse e o primeiro vizir também sabia disso. Era um jogo complicado, onde metade das cartas estava na mesa. E a outra metade escondida nas mangas...

Crevatolf - Cap. 6

A primeira pessoa que conhecemos, ao chegar em Paraíso, foi Prosfrustrede. Ele e Trestede nos mostraram toda a cidade, que é banhada pelas luzes de Borboreal. Com suas diversas partes de metal polido, a cidade reflete as multicores do portão fechado, transformando todos os lugares em vitrais coloridos.

Bem no centro da cidade, ao lado de um regimento de plurinogorfos e guardada por oito crocofantes, está o túmulo de Viramundo, no qual se escreveu "Esquecido pelas profecias, nunca pelos amigos".

Abaixo dele, sabíamos que nossa mãe estava cristalizada no tempo, esperando por uma cura improvável.

A cidade era bastante militar: não havia comércio e os diferentes seres que ali habitavam eram remanescentes da batalha final contra Los. A floresta sempre-viva cercava toda a cidade, estendendo-se por um bom território (como conseguíamos ver de cima da muralha da cidade). Mas, com ajuda de olhos de jaguarade, era possível ver um exército ainda mais vasto acampado, impedindo a floresta de avançar.

Magos lançavam imensas bolas de fogo nas árvores e apodreciam o solo para que nada nascesse ali. Os cornocorpóreos se embrenhavam na floresta, tentando fugir das esquadras de bugrerões e corcoromeis que os caçavam por entre os troncos. Um equilíbrio havia se imposto: nem o exército do primeiro vizir conseguia avançar, nem as árvores.

Assim, relativamente a salvo, recomeçamos nosso treinamento, e foi dessa forma que passamos três anos. Ao mesmo tempo em que aprimorávamos nossas habilidades, buscávamos uma forma de sair cerco e seguir para o único destino que parecia certo: Crevatolf, o portão onde o desejo vira delírio...

Era raro termos notícias do que acontecia no Sul, sitiados como estávamos. Tudo o que sabíamos veio através de um bugrerão louco que foi capturado na floresta pelos cornocorpóreos.

O bugrerão viera a pouco tempo do sul. Sua bocarra vivia aberta, deixando exposta as diversas fileiras de dentes. O couro que revestia seu corpo, em geral brilhante nos seres da espécie, era opaco e úmido, como se suasse a frio todo o tempo.

Não conversa direito e seu olhar buscava repetidamente o chão, atrás de movimentos ocasionais de folhas levadas pelo vento. Ainda assim, soubemos que o primeiro vizir tinha muitos problemas no Sul. Talvez por isso não atacasse a cidade com todas as forças. O bugrerão se referia à loucura podre que invadira a região.

E tinha pânico ao se lembrar da poeira desejante...

terça-feira, 2 de setembro de 2008

Desculpem a nossa falha

Estou com labirintite, por isso não estou conseguindo atualizar a história. Volto em breve, assim que as coisas pararem de rodar.

Abraços,

Augusto Galery

sábado, 30 de agosto de 2008

Crevatolf - Cap. 5

O portão exercia uma força opressora sobre os quatro companheiros. Hopo e o crocofante nem olhavam em sua direção. Gabel só o olhava de soslaio e mesmo Bea se sentia nervosa ao fitá-lo diretamente. As grades, de um metal alvo e brilhante, lançavam fachos de luz que contrastavam com o branco da neve, ao redor.

Decidiram descansar, antes de seguir em frente.

- Então vocês não foram criados em Paraíso? - perguntou Hopo, humildemente, buscando algum assunto que desviasse a atenção de Crevatolf.

- Não... - respondeu Bea - Mas eu me lembrava do interior do castelo e, vagamente, das cócegas que meu pai me fazia.

- Acha que vão reencontrá-lo? - perguntou o metagorfo.

- É o que diz a profecia... - sussurou Gabel, com o frio e o medo roubando-lhe a voz.

- Profecias... - falou o crocofante, em seu estranho sotaque animalesco. Mas o tom de descrédito ficou claro, lembrando aos meninos de alguém que conheceram antes de encontrar o semi-paquiderme: Marxus, o pequeno mago.

- Ainda não tivemos ânimo para uma boa conversa. - disse Hopo - Quem sabe se soubéssemos da história desde o começo, pudéssemos ajudar mais? Se é que há uma história a ser contada...

- Ah, sim. Há uma história! - disse Gabel - e contá-la poderia nos fazer bem. Por que não a conta, Bea?

A princesa sorriu. Um sorriso doce, fraco, cansado e, ao mesmo tempo, ansioso, surgiu em sua face magra. Contar a história poderia trazer frescor aos detalhes importantes e a tudo que aprenderam no caminho.

Mas não seria simples.

A história era dolorida.

Ainda assim, buscando fôlego, a menina a contou.

sexta-feira, 29 de agosto de 2008

Crevatolf - Cap. 4

Já dentro de casa, em torno da mesa do jantar, Trestede nos contou toda a história de Viramundo: de como ele, de enganado, passara a herói e fechara Borboreal. E do que aconteceu depois disso.

Quando percebemos que Los havia voltado para seu próprio mundo, devido ao fechamento de Borboreal, a maioria de nós correu para ver o que acontecera à Rainha. Eu estava próximo a ela, na linha dos mágicos, mas não percebi a chegada do rouxibel. Prosfrus me contou, mais tarde, que mal pode percebê-lo se aproximar, tão pequeno e veloz, cortando o ar com asas que batiam a uma cadência invisível.

Ele ferroou a rainha próximo ao pescoço e caiu, vazio. Todo seu sangue pestinolento foi injetado no corpo de Anácris.

Os magos e bruxos reunidos mal tiveram tempo de pensar em algum feitiço que pudesse salvá-la. Acabaram congelando-a em um cubo de tempo, que rapidamente cobrimos e enterramos. Ela ainda está no campo de batalha onde vencemos Los. Nosso medo era que o primeiro vizir a encontrasse para terminar o serviço nefasto que começara. Assim, em cima e ao redor de sua câmara soporífera, construímos uma cidade de ferro, cujos habitantes são seus guardiões.

Prosfrus fez um esforço tremendo para salvar Viramundo. Em vão. O garoto despencou dos céus e atingiu o chão mais rápido do que as reações que tivemos.

Seu corpo foi restaurado pelos mágicos e mumificado. Seu túmulo está exatamente acima da câmara de Anácris, na praça construída no centro da cidade guardiã, que recebeu o nome de Praça de Heróis.

A cidade, no entanto, encontra-se sitiada pelo primeiro vizir. Felizmente, ela é quase totalmente auto-sustentável e o enorme exército que lutava contra Los está do nosso lado. Mas as forças do primeiro vizir crescem a cada dia.

Grandes assembléias com a participação de todos foram realizadas, e concluímos que o primeiro passo era trazer de volta os príncipes de Paraíso, pois enfim a profecia poderia seguir seu rumo.

Faz pelo menos 4 anos que saímos da Terra e voltamos para Paraíso. Por três anos nos preparamos para partir para o Sul. Já não sei mais a quanto tempo estamos viajando.

quarta-feira, 27 de agosto de 2008

Crevatolf - Cap. 3

A chegada de Bea não deixou de ser um alívio. Vivendo nesse planeta racional e esquecido, às vezes eu acreditava ser louco. Se eu contasse para alguém que acreditava ser o príncipe de um planeta longínquo, cheio de seres estranhos e magias, certamente me convenceriam a tomar algum remédio.

Não me lembrava dela e a olhei com timidez, quando seus olhos se levantaram e se encontram com os meus. Mas ela abriu um sorriso imenso e correu para me abraçar. Seu corpo era quente e firme, diferente do corpo dos plurinogorfos. A sensação me deu vontade de chorar. Eu sentia muita falta de contato humano. Os plurinogorfos são tão diferentes de nós...

Por cima dos ombros de minha irmã, vi alguém que já conhecia, mas tinha visto poucas vezes nos últimos tempos. Seu nome era Trestede e ele era um dos guardiões que vieram comigo para a Terra.


- Olá, Gabel... - ele disse, com um sorriso fraco.

- Olá, 'Seu' Josias! - eu disse, sorrindo ao me referir ao nome que ele usara nos últimos anos, no planeta. - Anda sumido!

- Estive em Paraíso... - ele me surpreendeu com a resposta.

Bea me soltou e olhou meu rosto. Examinou-o inteiro, cuidadosamente.

- Nada... - disse, enfim. - Nada que me lembre o bebê que conheci tão rapidamente. Se eu te visse na rua, não saberia quem você é...

Sorri para ela.

- Estamos na mesma situação, então... Mas eu diria: lá vai alguém com o nariz igual ao meu!

Ela soltou uma gargalhada aberta e gostosa.

- De nosso pai! - E me abraçou novamente, com mais força, dessa vez.

Crevatolf - Cap. 2

O portão não era tão grande quanto Borboreal. No meio do branco, parecia oprimido. Os quatro viajantes pararam à distância e os meninos e o metagorfo desceram do lombo do crocofante. O animal abriu a bocarra cheia de dentes para receber mais uma refeição. Mastigou o macapré devagar, apesar da sensação de avidez causada pela fome. Sabia que as rações ficariam escassas naquelas planícies onde tantas vezes penetrara, mas que, pela primeira vez, atravessava. Não queria ver Crevatolf, mas devia o esforço aos meninos.

Agora seriam poucos metros e poderia voltar para casa.

Já o casal de humanos não estava certo se voltaria.

Lembraram-se de tudo o que haviam passado, desde seu reencontro. Gabel não se lembrava da irmã - tinham se separado quando ele era recém-nascido - e se surpreendeu ao vê-la em seu portão, a universos de distância, na Terra.

Tinha oito anos quando a viu...

Eu voltava para casa de meus treinos. Os plurinogorfos que me criaram fizeram questão que eu treinasse atletismo desde quase bebê. Diziam que eu voltaria para Paraíso e precisaria estar pronto para a batalha. Como nunca me interessei pela magia, preferi cuidar do corpo.

Pranestrede me ensinava as lutas de Paraíso, e minha preferida era o suorca, luta corporal com espécies de adagas de duas pontas nos sapatos e luvas - oito pontas no total.

Quando cheguei em casa, uma garota de 16 anos estava sentada na porta, conversando com Pranestrede, que se mostrava humilde e, ao mesmo tempo, entusiasmado. A garota tinha cabelos loiros, olhos negros e um nariz exatamente igual ao meu. Vestia um macacão de material estranho e com diversos bolsos frouxos, que me pareciam pesados de tão cheios.

Mas o que agarrou minha atenção foi o pingente em seu pescoço. Era um pequeno cubo negro pendurado por um dos vértices. Símbolo dos mágicos.

Eu o reconheci imediatamente: era o colar que via todas as noites antes de dormir, ao olhar para o retrato pintado de minha mãe pendurado na parede de meu quarto.

Percebi, assim, que era hora de voltar para casa.

terça-feira, 26 de agosto de 2008

Crevatolf - Cap. 1


Hopo pousou na traseira do crocofante, tentando se equilibrar no escasso lugar deixado pelo casal de meninos. O frio o castigava e o vento enchia seus olhos de lágrimas, que se congelavam mal escorriam pela penugem da face. O pequeno metagorfo recolheu as asas e adaptou suas garras para melhor o fixarem no lombo nodoso e áspero do semi-paquiderme. Fechou os olhos, mas o reflexo branco das planícies cobertas de neve continuou visível, forçando-o a apertar bem as pálpebras para conseguir um pouco de escuridão.

Bea e Gabel se espremiam um ao outro, tentando diminuir o frio. O crocofante acompanhava os vales das dunas de gelo, buscando não se cansar com as subidas e descidas. A estratégia, no entanto, colocava-os no caminho exato do vento constante e brutal que varria a planície gelada.

Gabel enfiava a cara entre os cabelos soltos da irmã, tentando proteger-se das baixas temperaturas. Ela agarrava-se à sela, que era revestida com pêlos de blufos e cujo cepilho alto protegia-a até o pescoço.

Hopo aproximou-se, devagar, do menino, literalmente moldando seu corpo ao dele. Gabel o enlaçou com uma das mãos e o espremeu junto a si. Sentindo que isso era uma permissão, o metagorfo soltou suas penas, substituindo-as por pêlos grossos e abundantes, e assumiu a aparência de um grande linguado peludo, envolvendo quase todo o corpo do menino.

O sol não se punha naquela parte achatada do mundo. A luminosidade refletida no branco da neve doía nos olhos, mas não trazia o menor conforto em termos de calor. ‘É um lugar de morte, sem dúvida...’, pensou Hopo.

Enfim, os contornos de um grande portão se delinearam no horizonte. Dois grandes pilares de pedra, que se engrandeciam à medida que o crocofante se aproximava, serviam de apoio para as duas grades que formavam o portal. Curvas no topo, as grades formavam um meio-círculo que recortava o céu.

Não havia muros.

Apenas o portão, escancarado, cravado no meio do gelo, com a planície cercando-o por todos os lados.

Mesmo à distância, puderam ler seu nome nas barras retorcidas: Crevatolf. O portão dos encontros, onde o Desejo tornara-se Delírio, diziam as velhas lendas.

A entrada da casa da Morte.

quarta-feira, 20 de agosto de 2008

Nova temporada da Saga dos Portões

A nova temporada começa em 5 dias...

terça-feira, 5 de agosto de 2008

Borboreal - Cap. 34 - Final


Agora ficou fácil. Ajeito a armadura que me serve de asa, levanto o peito para diminuir a velocidade. A fechadura está tão perto que vejo o brilho de sua armação metálica.

Eu o vi se aproximando a toda velocidade da rainha. Ela mandara todos para o campo, quem a protegeria?

- Anácris! - gritei, em vão. E a vi despencar no chão


Muito, muito pouco, agora. Olhei para baixo e vi Los sair do transe como quem se colide com um poste. Ele tentou se equilibrar e olhar para cima, ao mesmo tempo, o que o fez cair sentado.

Muito, muito perto, agora. Eu estava perfeitamente alinhado ao buraco da fechadura. A chave parecia se atrair para ela.

O grupo de mágicos pareceu levar um baque, como se estivessem em um navio que se choca. A maioria parecia tonta, mas os mais perto da rainha correram para auxiliá-la.

Então senti o calor. A armadura térmica me protegeu das queimaduras, mas fui atirado para cima como um brinquedo. Los urrava. Aflito enquanto rodava pelo espaço, tentava fixar minha visão em Viramundo, sem conseguir.


A chave entrou. Fui jogado para a frente quando ela parou no fundo do mecanismo. Tive que me segurar com toda força que ainda tinha. Meus dedos enrijecidos pelo frio deslizaram por toda a superfície entalhada da lança. Parei com as mãos espremidas na fechadura e a gravidade me puxou.

Eu estava agora pendurado na lança, enquanto via o imenso buraco negro no céu ir se tornando luz vibrante - azul,verde, laranja e amarela.

Ao mesmo tempo, era como se anoitecesse abaixo de mim. Deixei minha cabeça pender para baixo mas, antes de constatar que Los se extinguia, fui atingido pelo calor.

Enfim, consegui recuperar meu controle. Havia sido jogado para longe pelo calor. Estava agora atrás da linha dos mágicos.

A luz havia desaparecido.

Viramundo fechara Borboreal! O portão da luz voltara a emanar suas cores.

Olhei para a rainha, deitada no solo queimado pelas tantas batalhas. Ela não parecia respirar. Tentei achar seu assassino, mas eles são muito rápidos.

Comecei a voar em sua direção, quando me dei conta: como é que Viramundo ia descer de lá? Ele saberia usar a torre de vento? Olhei para cima e o vi caindo


Já não sentia meu corpo, todo queimado pelo urro. Eu deveria ter pensado que poderia sobreviver... Devia ter combinado alguma coisa com Tula... Mas havia esquecido. Chamei-a, mas foi só um sopro sussurrado que saiu de meus lábios queimados.

Via a chave, que havia ficado na fechadura, se afastar muito veloz de mim. E o que importava?

Há pouco tempo atrás, eu era um covarde insignificante que podia ser usado como isca para assassinos.

Agora, eu era um herói em Paraíso.

'Seu' Josias sentiria orgulho de mim!

Voei em sua direção, com toda a força que tinha nas asas. Gritava a todos que salvassem Viramundo. Eu estava muito longe!

E meus pais? Provavelmente caçando 'Seu' Josias pro todo lado, a minha procura... Senti saudades de minha mãe. E isso me trouxe saudades da Rainha Anácris e de seus filhos, que eu nunca conheci. Eles agora poderiam voltar para casa, voltar para o amor de mãe da rainha, que eu só roçara durante nossas conversas. E cumprir a profecia da qual eu nunca participei.

Pensei ouvir meu nome ser chamado pela voz de Prosfrus.

Já não conseguia ver a chave. longe no céu. Não quis olhar para baixo. Ver o chão se aproximar. Pensei que nem sentiria o impacto.

E foi assim.

FIM (da primeira temporada)

domingo, 3 de agosto de 2008

Borboreal - Cap. 33

Busquei meu peito com a mão esquerda e achei as alças da armadura térmica, como vinha treinando nas noites. Puxei-as levemente e elas se abriram como uma asa-delta. Deslizei pelo espaço, sentindo o vento me empurrar para o portão.

Na mão direita, apertava tão forte a lança que sentia meu coração pulsar nos dedos.

Lá embaixo, uma linha de pessoas se formava há alguma distância de Los, enquanto os crocofantes e os plurinogorfos continuavam a atacá-lo.

Um arrepio me passou pelas costas quando percebi que a uruguia havia diminuído a velocidade e agora voava em direção oposta ao portão. Por um instante, pensei que Viramundo havia desistido, o que teria colocado todos nós em sérios apuros.

Mas aí percebi o pequeno ponto planando pelo céu, em direção ao portão. Mesmo com o olho de jaguarade, não consegui entender como o garoto conseguia flutuar daquele jeito, mas eu perguntaria mais tarde.

Era preciso nos preparar para ajudá-lo.

Mandei que todos os magos, bruxos e feiticeiros se alinhassem e começamos a conjurar o encantamento. Cada um dos mágicos tirou seu cubo e começou a misturar os ingredientes na ordem e quantidade que eu havia ensinado.


Eu comandava os ataques dos outros plurinogorfos. Os arqueiros voavam à minha frente seguindo minhas ordens para escapar das mãos do ser-estrela. Los deu um urro e, por um instante, ficou livro dos ataques. Então eu pus tudo a perder, pois a curiosidade me forçou a procurar o garoto acima de nós. A uruguia voltava, mas eu pude ver o menino usando a armadura térmica como uma falsa asa para planar no céu. E Los me observava, naquele instante.

Senti o olhar de Los em mim. Olhei para baixo e ele me fitava, com olhos flamejantes. O ataque o distraíra momentaneamente, mas ele havia me percebido, agora.

Eu estaria alto o suficiente para escapar de seu urro? Pensei, tarde demais, que deveria ter trazido duas armaduras para mim.

O monstro parecia tomar fôlego. E eu pude perceber que ele abria a boca, com um leve sorriso. Certamente, devia ter percebido a chave em minhas mãos. E parecia se sentir seguro o suficiente para me dar a certeza de que eu morreria carbonizado.

Era a hora! Los havia percebido o plano. Mas todos os mágicos estavam prontos! Comecei a gritar palavras mágicas e todos me seguiram. Los abriu a boca.

Los abriu a boca. Fechei os olhos. Ouvi então um brevíssimo rugir e tudo ficou quieto. Uma lufada de ar quente me atingiu, fazendo com que eu subisse mais. Los não se movia.

Los não se movia! Ordenei aos arqueiros que parassem o ataque e olhei para cima. Viramundo subia no céu, levado pelo ar quente do início do urro de Los. Olhei para trás e para baixo e vi a linha de mágicos. Todos estavam concentrados, seus cubos abertos em direção ao monstro, suas faces retorcidas pelo esforço. Percebi que o encanto não duraria muito tempo: a luz que saia dos cubos em direção a Los ficava a cada instante mais fraca. Olhei para cima: seria o suficiente?

Borboreal - Cap. 32

Fazia frio tão alto no céu. A armadura térmica me protegia, por enquanto. Era difícil respirar, também. Mas eu continuava agarrado à chave-lança, enquanto me equilibrava em Tula.

Lá do alto, eu pude distinguir Los, embora não conseguisse olhá-lo diretamente. Era imenso: as grandes árvores da floresta sempre-viva deviam bater-lhe abaixo da cintura.

Mas eu estava bem mais alto. Só me questionava se seu urro chegaria tão alto, se poderia machucar Tula - eu deveria ter trazido uma armadura térmica para ela! Preocupava-me comigo, também, é claro.

Vi formigas começarem a se agrupar diante das tendas. Deviam ser os crocofantes. Perguntei-me se eles já sabiam de minha 'fuga'. Achei que sim, pois os crocofantes começaram a avançar - um número espantoso deles - a toda velocidade. E Los ainda estava próximo ao portão.

O que planejava a rainha?

Que falta faz um rádio de ondas curtas nas costas de Tula...

Pedi à minha uruguia que parasse de voar em círculos e começasse a se aproximar do portão. O vento era forte e a ajudava. Também me ajudaria, na hora certa. Eu havia treinado durante tantas noites, escondido, jogando-me das árvores...

Peguei o olho de jaguarade no meu bolso. Os batalhões atravessavam os campos que separavam a tenda do portão e se aproximavam de Los. O ser-estrela já havia percebido alguma coisa. Pôs sua mão escaldante no chão, devia senti-lo vibrar.

Agora, os cornocorpóreos começaram a sair da floresta e ir em direção ao portão. As árvores começaram a disparar projéteis que, ao atingirem Los, se desfaziam em fumaça.

Pedi a Tula que se apressasse e ela bateu as asas com toda força. Mas eu senti seu medo.

A que distância estávamos? Seria perto o suficiente?

Implorei a ela para continuar. Brava Tula, vencendo seu medo por mim.

Lá embaixo, os cornocorpóreos enrolavam-se sobre o próprio corpo e jogavam-se embaixo dos pés de Los, num ataque suicida. O monstro gritava ao pisá-los, perdia o equilíbrio, mas logo se aprumava. Em seguida, o primeiro batalhão de crocofantes - estes, obviamente, vestiam armaduras térmicas - começaram a atacá-lo. Subiam-lhe pelas pernas e mordiam. Los espremia-os entre os dedos.

O ser-estrela tomou fôlego e urrou. A força do calor jogou os crocofantes no chão. Nesse instante, os arqueiros de gelo já estavam posicionados: centenas de plurinogorfos espalhavam-se pelos céus e disparavam flechas congelantes, que deixavam marcas azuladas no monstro e aos poucos tornavam-se fumaça. Los urrou de novo, mas achei que, dessa vez, era de dor.

Agora já estava perto o suficiente.

Pedi a Tula que diminuísse a velocidade e voltasse para casa, em seguida. Abracei seu pescoço com força, beijei sua nuca.

E pulei no céu azul.

sexta-feira, 1 de agosto de 2008

Borboreal - Cap. 31

Não consegui dormir, aquela noite. Era a excitação. Medo, também, confesso. Escrevi um bilhete com uma frase simples, endereçado aos amigos que havia feito: 'Seu' Josias, Prosfrus e a rainha Anácris.

Não sou príncipe, mas posso ser herói.

Peguei uma armadura térmica e alguma carne, para Tula. Depois, fui até a tenda principal. O guarda no portão acordou assustado - era muito cedo, estavam todos dormindo - mas, ao me ver, sorriu e relaxou. Eu tinha conversado um bom tempo com a rainha na noite anterior e disse a ele que havia esquecido algo na tenda. Ele me deixou entrar.

Peguei a chave - era mais pesada que uma lança, e nem um pouco flexível - e a apertei com força. Senti juntar-se ao seu peso o da responsabilidade pelo que eu estava fazendo. Mas eu era outro: não mais o menino covarde do começo da história! A lança pareceu brilhar por um instante, num brilho negro e pulsante.

Enrolei-a no cobertor que havia trazido e passei-a por debaixo da lona lateral da tenda. Rapidamente, sai - o guarda nem acordou - dei a volta e a peguei na relva.

E corri para fora do acampamento. Em direção à Tula.

Acordei com os gritos de Prosfrus. Era bem cedo, mas os batalhões já se agrupavam e saiam para a batalha diária com Los.

Ele me mostrou o bilhete com a letra engarranchada do menino.'Não sou príncipe, mas posso ser herói'. Um calafrio me atravessou a espinha. Corremos para a sala principal.

A chave havia sumido.

O guarda nos contou da visita de Viramundo à tenda, algumas horas antes.

Prosfrus gritava - Traidor! - mas tentei manter a calma. Juntar as peças do quebra-cabeça. A uruguia... Era tarde demais para impedi-lo. Talvez pudéssemos ajudá-lo.

Mandei Trestede chamar todos os magos, feiticeiros e bruxos que estivessem no acampamento, e que Prosfrus apressasse os batalhões para marcharem em direção ao portão. Todos que estivessem em condição de combater deveria ir para a batalha. Desejei que Viramundo fosse inteligente o suficiente para esperar a luta começar, o que distrairia Los.

Corri até o campo em frente às tendas e busquei o céu com um olho de jaguarade. Depois de procurar alguns instantes, achei a uruguia - tão alta que mal pude distinguir o menino em cima dela.

A uruguia voava em círculos. Ele esperava!

Os batalhões saíram apressados. Meu pequeno esquadrão de mágicos foi logo atrás, no lombo de crocofantes, carregando todo o tempo, luz e desejo que ainda tínhamos.

O céu começa a clarear. Estávamos nos aproximando de Los.

sábado, 26 de julho de 2008

Borboreal - Cap. 30

Foi 'Seu' Josias que a viu, quando nos encontramos para almoçar.

- Bicho agourento... - exclamou, ao olhar para o céu.

Olhei na mesma direção e comecei a pular de alegria. Prosfrus, que já se servira e carregava o prato, veio correndo.

- O que foi? O que foi?

- É ela! É a Tula!

- Quem? Aonde? - ainda não tínhamos contado nada a 'Seu' Josias e ele me olhava, assombrado.

- Carne! Precisamos de carne!

- Vamos à cozinha! - disse Prosfrus.

Saímos os três correndo. 'Seu' Josias ainda gritando "o que houve? O que houve?"

Minutos depois, trazíamos todos os restos das carnes do almoço que os cozinheiros não haviam usado: vísceras, couro, ossos. Carregávamos em uma manta, que segurávamos pelas pontas.

Fomos até ao campo em frente às tendas e estendemos lá a manta com as carnes.

Tula nos sobrevoava, mas não parecia querer pousar. Pedi aos dois plurinogorfos que me deixassem a só. Achei que Tula os temia, e estava certo. Pouco depois que eles se afastaram, Tula começou a voar mais e mais baixo. Eu me coloquei a alguns passos da manta e me sentei. E cantei a mesma canção que havia cantado antes.

Poucos minutos depois, ela comia a carne na manta. Cheguei perto e a toquei. Acho que havia ganhado uma amiga.

Passei vários dias domesticando a uruguia. Enfim, ela se sentiu confiante o bastante para deixar Profrus e 'Seu' Josias chegarem perto. Comecei a treiná-la. Depois de algumas semanas, eu fazia diversos passeios em suas costas. Ela entendia o que eu queria quando voávamos e parecia agradecida pela comida.

Mas era covarde.

sexta-feira, 25 de julho de 2008

Borboreal - Cap. 29

A uruguia não parecia entender o que eu dizia, mas parecia ter inteligência. E medo, ainda. Passou direto por Prosfrus, sobrevoou por cima das árvores da floresta sempre-viva e pousou no topo de uma delas, ficando muito quieta.

Comecei a acariciar sua cabeça. Queria me mostrar seu amigo. Usava com ela técnicas que vi meu pai usar com uma cadelinha que tivéramos alguns anos atrás. Mas eu tinha a impressão que assim que eu saísse de cima dela, ela sumiria para sempre. Eu não podia distingui-la das outras uruguias. Percebi que ela era menor, mas não acho que isso seria suficiente.

O que eu queria mesmo era levá-la para casa.

Ficamos algumas horas por ali, até que ela adormeceu. Abria e fechava o bico e eu pensei que estivesse sonhando com comida. Será que eu poderia conquistá-la, assim?

Desci de suas costas devagar, passando a um galho próximo. Ouvi, ao longe, Prosfrus gritando meu nome. Tudo o que pude pensar foi em descer da árvore, caçar algum animal pequeno e oferecê-lo à Tula (pois, a essa altura, já tinha dado nome à uruguia, o mesmo da cadela de minha infância).

Comecei a descer pelos galhos até o mais baixo. Mas havia uma grande parte do tronco que não tinha galhos. Mais uma vez, toquei as alças da armadura térmica. Daria certo? Havia árvores demais para tentar.

Agarrei-me ao tronco tentando abraçá-lo. A árvore sentiu cócegas e se mexeu. Tula acordou e voou.

Eu a perdi.

Cocei de novo o tronco, tentando engolir minha decepção, e a árvore se dobrou até me deixar no chão. Quando pulei de seu galho, ela se desdobrou violentamente, balançando até parar.

Ainda ouvia os gritos de Prosfrus e os respondi.

Ao ouvir minha voz, ele se pôs a bradar com entusiasmo. 'Domador de pássaros', ele exclamava.

Mas, ao nos encontrarmos, minha expressão não era feliz.

- Ela foi embora... - eu disse.

Ele me abraçou e me atirou para o alto.

- Já sabemos o que fazer. Precisamos só pensar melhor sobre o assunto. - sorriu.

Saímos da floresta em direção às tendas. Eu me sentia orgulhoso e frustrado ao mesmo tempo.

Muitos metros acima de nossas cabeças, Tula nos seguia.

quinta-feira, 24 de julho de 2008

Borboreal - Cap. 28

Era uma guerra, aquilo! Tanta carne espalhada, carbonizada, imprestável. Tínhamos que lutar por um pedaço decente.

Eu era pequena. Assustava-me os bicos ferozes de minhas primas ao lutar pela carne fresca e sanguinolenta dos plurinogorfos caídos. Batiam-se como em batalha. E tudo só pelo prazer de lutar. Não conseguíamos acabar com toda a carne no chão, mas as maiores nos forçavam a brigar por ela.

Fui escorraçado mais uma vez. Estava faminta. Era pequena...

Vaguei pelo campo, aos pulos, desajeitada no chão. Nas alturas, eu era soberba! Mas no chão me sentia atrapalhada, fora do ambiente... As carnes eram vigiadas, não havia como evitar a luta. Mas eu estava machucada, me sentia mal e faminta.

Não acreditei quando vi o plurinogorfo na beira da floresta. Ele estava ali, antes? Como é que ninguém o tinha visto? Fingi não vê-lo, também. Andei para um lado e para o outro, como se procurasse alguma coisa, mas sempre me aproximando das árvores. Cada vez mais perto da carne estraçalhada no chão.

Então, a fome me ganhou. Esqueci a precaução, certa de que conseguiria apanhar alguns bocados de carne antes que uma de minhas primas grandes chegasse para lutar por elas. Voei até lá, descuidada, inocente.

Meu corpo doía de ficar nos galhos. Eu vasculhava o campo com o olhar e as horas passavam até que uma uruguia começou a se aproximar. Rápida como um raio. O bico aberto em direção a Prosfrus. Quis avisá-lo, mas alertaria a uruguia. Ele tinha que estar pronto para o papel dele. Se eu não estivesse, ele me daria uma bronca. Então ele precisava estar!

Faltava pouco! Muito pouco! Abri meu bico salivando ao pensar no suco vermelho e no músculo fibroso! Então a coisa se mexeu! Tentou me agarrar! Estava viva! Era uma armadilha! Bati as asas com força, me afastando rapidamente do chão e daquele plurinogorfo que aos poucos assumia suas feições normais.

Ela subia! Olhando para baixo, o pássaro subia em grande velocidade! Em minha direção.

Acelerei meu tempo e a vi diminuir a velocidade. Três metros. Dois. Passei os dedos pelas alças da armadura térmica. A uruguia me parecia enorme. Eu não tinha como errar.

Então eu o senti. Caiu em minhas costas vindo do nada. Era leve e macio, mas se agarrou em mim com força e determinação. Girei a cabeça e encarei-o.

A ave girou a cabeça e me encarou. Olhei para ela, assustado e, acho que por pura falta de graça, sorri. Vi o medo nos olhos dela.

No princípio, achei o humano simpático. Mas então ele arreganhou os dentes para mim. Um arrepio gelado atravessou minhas penas. Voei mais alto, me joguei para os lados, mas ele continuava lá. Em pânico, resolvi pedir ajuda. Comecei a voar em direção ao campo onde minhas primas se encontravam.

Mas, no meio do barulho do vento e do palpitar do meu coração, eu ouvi uma música. O humano cantava.

Não sei da onde tirei a idéia. A uruguia parecia apavorada e eu quis acalmá-la. Eu confesso que tinha muito medo. Estávamos muito acima das árvores. E ela voltava para o meio do campo. Não estou certo de que eu não pareceria apetitoso para as outras uruguias. Eu precisava acalmá-la.

Olhei para o humano, novamente. Ele parecia tão assustado quanto eu. Senti pena. As outras uruguias o matariam, facilmente. E eu seria ridicularizada. Nunca mais conseguiria comida.

Eu já era uma pária. Considerada covarde. E a voz do menino era doce, amiga.

E não é que o garoto caiu em cima da uruguia? Foi com um aperto no coração que eu a vi desaparecer nas alturas com ele nas costas. Não tive nem tempo de correr atrás e tentar alcançá-los.

Eles era um ponto escuro no céu.

Eu nunca mais veria o menino.

Onde é que eu estava com a cabeça?!

Sentei-me, tentando acompanhar os dois no espaço. Meus olhos se esforçavam para vê-los.

Mas agora eles pareciam crescer. Estavam voltando! Pela rainha, o menino havia domado a uruguia!

terça-feira, 22 de julho de 2008

Borboreal - Cap. 27


- Pára... - eu sussurei. E, em seguida, mais alto: - Pára!

Prosfrus parou de correr e sentiu, no meu olhar, que devia me por no chão. Foi um enterro rápido, o da minha criança. Eu simplesmente a deixei ir, rio abaixo, numa pequena canoa.

Ali, em pé, havia apenas Viramundo. Nem príncipe, nem herói. Alguém que não fora citado nas profecias e que, por isso mesmo, não precisava respeitá-las. E foi que se eu renascesse em Paraíso. Senti-me, como nunca, ligado àquela terra. E quis, intensamente, capturar uma uruguia.

Minhas pernas, é claro, não se recuperaram tão rápidas. Ainda estavam bambas pelo excesso de adrenalina. Andamos devagar, tentando montar uma estratégia para ir atrás dos grandes pássaros.

- Eu notei porque elas conseguem subir tão depressa... - eu comentei - elas não voam para a frente, ao subir. Vão quase que na vertical...

- É verdade. - respondeu Prosfrus - E elas olham para baixo, ao vigiar o perigo. O que as deixa a mercê de um ataque por cima.

- É possível subir em uma das grandes árvores da floresta?

- É. Até fácil. Mas só poderíamos nos esconder na copa. Se ficássemos no tronco elas nos veriam. E seria loucura tentar pular sobre elas daquela altura...

- A não ser que o tempo estivesse mais lento. Será que a própria queda seria mais devagar?

- Eu estive refletindo. Você parece achar que torna o tempo dos outros mais lento, mas não é isso que realmente acontece.

- Não?

- Não. Na verdade, você acelera o seu tempo. Se você diminuísse o tempo do resto do mundo, as conseqüências seriam desastrosas... Você percebeu que já cresceu uns bons dedos desde que chegou aqui? É o seu tempo se acelerando...

Chegamos a uma das árvores no fim da floresta. As uruguias já haviam voltado ao seu banquete, e eu me esforcei para olhá-las se deliciarem com a carne dos combatentes mortos.

- Elas parecem preferir os plurinogorfos... - comentei, e encarei Prosfrus.

Enfim, contei a ele meu plano. Foi difícil convencê-lo. Mas eu deixei claro que ele era responsável apenas por minha educação, e não por minha vida. É claro que a excitação o envolvia e isso facilitava as coisas. Por fim, ele cedeu.

Começamos a coçar o tronco de uma das árvores, de uma forma que Prosfrus me mostrava, e ela se curvou até a copa ficar a centímetros do chão. Prosfrus continuou coçando a árvore e eu subi em um de seus galhos, não sem antes vestir uma das armaduras térmicas. Prosfrus foi ralentando as cócegas até que a árvore se pôs de novo em pé (ele me explicou que se parássemos de repente, a árvore levantaria de uma vez - era como eles faziam para usá-las como catapulta). A altura era estonteante e achei que talvez eu devesse ter aceitado a corda que Prosfrus queria me dar. Não para amarrar a uruguia, como ele sugeriu, mas para me amarrar aos galhos.

Eu preferi tentar, a todo custo, não machucar a uruguia. Havia assistido um documentário sobre o encantador de cavalos e achava que o melhor era tentar me tornar amigo dela. Até porque em Paraíso os animais pareciam mais inteligentes que na Terra.

Olhei para baixo e vi o plurinogorfo se deitar no solo, numa posição estranha. Usando sua capacidade de mutação, ele pareceu amolecer e ficou semelhante a um dos plurinogorfos que estavam caídos pelo campo.

Agora, era esperar.

domingo, 20 de julho de 2008

Borboreal - Cap. 26

Prosfrus era um guerreiro. Imagino também que raramente tenha lidado com crianças e acho que ele nunca realmente se deu conta de que eu tinha 12 anos.

Ou ele certamente não teria me levado a um campo de batalha. Especialmente num dia sanguinolento como aquele.

Mas ele me levou. E qualquer parte de mim na qual ainda havia pureza morreu quando eu saí da floresta e pude ver o final da batalha contra Los.

O cheiro de carne queimada e carvão em brasas enchia o ar. As imensas árvores da floresta sempre-viva que beirava o campo ainda ardiam com um fogo lento e eu estou certo de poder tê-las ouvido gemer. Então vi dezenas de cornocorpóreos estirados. Seus corpos semi-destruídos pelo fogo exalando cheiro de pêlos queimados. Os chifres retorcidos. Alguns com os olhos ainda abertos, vítreos. Outros com buracos crispados ao invés de olhos.

Mais à frente, centenas de crocofantes estavam carbonizados. Plurinogorfos retorcidos pela queda pareciam bonecos de massinha jogados de cima da mesa. Abatidos como insetos voadores, sua visão ainda era pior que a dos crocofantes. Esses eram apenas montes de carvão, enquanto que os plurinogorfos, protegidos do calor pelas armaduras térmicas, eram uma massa disforme avermelhada e cheias de pequenas pontas ósseas.

Segurei a mão de Prosfrus, lembrando-me, subitamente, de minha própria idade. Tive uma confulsão de choro e vomitei até cair de joelhos no chão.

Prosfrus me pegou no colo e me levou de volta para a floresta, desculpando-se insistentemente. Achei que também chorava. Confessou-me ter se descoberto insensível aos corpos depois de tantas batalhas, mas minha reação despertara sua indignação de novo.

Amaldiçoou Los e gritou alto.

Com o seu grito, vi voarem as uruguias. Eram negras e plumosas, grandes como um leão. A maioria levantou vôo do campo e ouvi suas asas batendo, mas algumas sairam de dentro da floresta. Rapidamente alcançaram o céu e eu fiquei as observando, do colo de Prosfrus, que corria.

sábado, 19 de julho de 2008

Borboreal - Cap. 25

Acordei naquele dia ouvindo o urro de Los. Foi raivoso, diferente. Algumas horas depois, quando eu já tinha tomado café e já treinava com Prosfrus, os batalhões voltaram e contaram a novidade: haviam conseguido desarmar parte das armadilhas do ser-estrela. A fúria de Los foi intensa e muitos morreram. Mas os que voltaram se mostravam felizes. Era uma vitória: ganhavam tempo e impediam Los de se afastar mais do portão e se aproximar das tendas.

Não houve uma comemoração, mas os seres ficaram de especial bom humor, naquela manhã.

Então, propus a Prosfrus um exercício diferente.

- Por que não saímos das tendas? Gostaria de treinar minhas habilidades com os seres da floresta...

Prosfrus gostou da idéia. Armamos uma pequena mochila de provimentos e entramos na floresta sempre-viva. As grandes árvores pareciam murmurar enquanto passavamos. Os cornocorpóreos nos olhavam sem maior interesse, preocupados em fazer buracos para as sementes, em se proteger na floresta e se acasalar.

Perguntei a Prosfrus quais os animais mais difíceis de se capturar, na floresta. Ele enumerou alguns seres que, por mais que descrevesse, eu não conseguia imaginar exatamente.

- E as uruguias? - perguntei, enfim.

- Dificílimas! - ele respondeu, sério. - Pouquíssimas foram capturadas até hoje...

- Não seria genial se conseguíssemos pegar uma? - eu propus. O plurinogorfo coçou os ombros, cruzando os braços no peito, como eu já havia visto ele fazer antes, quando pensava. Era o sinal de que ele cogitava aceitar o desafio.

- Seria genial... Mas muito perigoso... E seria uma visão horrível...

- Por que?

- Elas se alimentam de restos... - contou Prosfrus. - Portanto, ultimamente se reunem nos campos, após as batalhas.

- Como você faria para pegar uma? - continuei colocando lenha na fogueira das vaidades de Prosfrus.

- Elas voam ao menor sinal de perigo. Se avisam umas às outras. Podem ver a maioria dos objetos invisíveis.

- Mas são imunes a magias de tempo?

Ele sorriu. Ainda assim, seria difícil. Elas ganhavam altitude muito rapidamente. As penas de suas asas eram escorregadias. Quase impossíveis de se amarrar. Além de terem bicos poderosos, capazes de quebrar ossos.

Enquanto conversávamos, percebi que mudávamos a direção que tomáramos. Íamos para os campos de batalha.

sexta-feira, 18 de julho de 2008

Problemas Técnicos

Estou com alguns problemas no computador de casa, após uma atualização de hardware. Assim que os problemas forem resolvidos, retomaremos a história Borboreal, no Hiscas.blogspot.com.

Por favor, não desistam!

Abraços,

Augusto

domingo, 13 de julho de 2008

Borboreal - Cap. 24

Os dias começaram a se suceder. Eu treinava o dia todo, principalmente a luta com lanças, arma que eu sentia fazer parte de mim, desde que atravessara o corcoromel com a barra de ferro.

À noite, Prosfrus e eu ficávamos horas meditando. Ele me ensinava técnicas de controle do corpo e eu - para meu grande orgulho - comecei a ensinar a ele como eu controlava o tempo.

Já havia dez dias que eu estava lá, vendo todas as manhãs os exércitos partirem para batalhar com Los e voltar, reduzido e ferido. Vi poucas vezes a rainha, nesses dias, mas em pelo menos duas vezes sentamo-nos longamente para conversar. Eu contava para ela sobre a minha terra e ela me contava sobre Paraíso. Eu via sua aflição querendo ter notícias dos filhos, a saudade estampada em sua face, mesmo quando tentava sorrir. Senti pena dela e quis ser seu filho, mas não era.

Ela me contou sobre a chave.

Meu marido estava bem intencionado quando resolveu abrir os portões. Mas sou a primeira a admitir que ele foi precipitado. Eu também, já que incentivei em suas pesquisas e o auxiliei a construir o cetro que serviria de chave-mestra.

As chaves dos portais desapareceram junto com seu criador, há um tempo incalculável atrás. Os guardiões o vigiam, mas não podem abri-lo ou fechá-lo. São guardiões de seu poder, mas não o controlam. Usufruem dele para seus próprios objetivos, apenas.

Estudamos muito até entender o funcionamento das fechaduras e, por fim, montamos uma chave mestra, em formato de cetro. Ele pode ser usado para abrir ou fechar os três portões e foi encontrado caído ao lado de Crevatolf.

Los tenta chegar até as tendas para se apoderar do cetro. Se cair nas mãos dele, a batalha estará perdida. Ele ficara livre para sair de perto do portão e, se alcançar uma fonte de tempo próxima a um rio de desejos, terá acesso ilimitado a magias...

Olhei o cetro, que estava em uma campânula onde parecia flutuar acima da almofada vermelha que forrava o fundo. Devia ter cerca de 60 centímetros de comprimento e seu corpo era negro e cheio de detalhes em relevo. Sua ponta, no entanto, não lembrava as bolas que ilustram os cetros nas figuras dos livros. Ela se afinava como uma lança.

sexta-feira, 11 de julho de 2008

Borboreal - Cap. 23



Não só fiquei, como ganhei um novo amigo em Prosfrus. Ele era encarregado da segurança da rainha e se tornou meu treinador. Começou contando-me o que acontecia nas batalhas diárias.

Los nunca vai muito longe do portão.

Ele passa a maior parte do dia criando e montando armadilhas mágicas no caminho até a torre de vento, mas ainda não se sente seguro de abandonar o portão. A sua existência nesse mundo está condicionada ao portão ficar aberto.

A torre de vento fica bem embaixo da fechadura, que fica no centro do portão. Para fechá-lo, é necessário ir com a chave até a torre de vento, montada pelo rei para levar alguém até a fechadura, muito, muito alto no meio do céu.

Los também sabe que se nosso exército ficar muito poderoso, podemos derrotá-lo. Por isso, todo dia, nos ataca furiosamente. Conseguimos evitar que ele chegue às tendas, mas acho que nunca o machucamos, realmente. Dessa forma, ele destrói alguns de nossos batalhões e garante que não nos agruparemos o suficiente para ter força para derrotá-lo.

Ele também dizima nossa floresta sempre-viva. As árvores funcionam como catapultas, além de dificultar seu andar.

Sofremos muitas perdas, diariamente. Para nossa sorte, chegam voluntários com imensa freqüência de todas as partes do reino. Mas uma hora dessas ou ele vai conseguir assegurar o portal, com suas armadilhas, ou ninguém mais vai chegar e ele vai estraçalhar os exércitos da linha de frente.

Aí, o reino será dele. Paraíso é um lugar disputado, pois poucos lugares em qualquer um dos universos tem fontes naturais de tempo manipulável. Percebemos rapidamente que ele não precisa de seres vivos em Paraíso. Tudo o que ele quer é o tempo.

Passeávamos pelo acampamento, acompanhados por 'Seu' Josias, que havia voltado à sua forma natural que me lembrava um boneco de testes de acidente de carro. Eles me explicaram sobre as armaduras térmicas: as couves que se abriam em asas e envolviam o corpo dos combatentes, para que eles não se carbonizassem com o urro de Los ou ao chegar perto dele. Vimos a floresta sempre-viva se renovando após o ataque de horas atrás e, com o auxílio de um olho de jaguarade - um objeto mágico de vidro que permitia ver à distância - pude ver todo o portão e a devastação que Los vinha fazendo.

Mas não pude ver Los com o olho de jaguarade. Seu brilho ampliado pelo objeto me deixaria cego.

- Por que é necessário ir até a torre de vento? Não é mais fácil voar até a fechadura? - perguntei aos plurinogorfos.

- Alto demais. - respondeu Prosfrus - Ninguém consegue voar tão alto em Paraíso.

- Só uma uruguia... - comentou 'Seu' Josias - Mas é quase impossível pegar uma... E ela provavelmente não nos obedeceria. Não são treináveis e são estúpidas como portas... Não poderíamos controlá-la para chegar perto o suficiente da fechadura.

- E qual é o plano?

- Por enquanto, o plano é nos defendermos e bolarmos um plano...

Não era uma situação agradável, eu concluí.

quinta-feira, 10 de julho de 2008

Borboreal - Cap. 22

- Bem, Viramundo, não posso permitir que você fique, porque estamos em guerra... - disse a rainha, recomeçando a discussão. Eu rebatia cada argumento dela, mas ela rebatia cada um dos meus argumentos. Até que ouvimos uma terceira voz entrar no debate.

- Eu o vi matar um corcoromel...

A voz era de 'Seu' Josias e, para minha surpresa, estava a meu favor. A rainha olhou para o plurinogorfo e depois para mim.

- Eu devo dizer que foi impressionante...

Sorri, esperançoso. A rainha quedou-se, pensativa. Enfim, chamou:

- Prosfrustrede!

Um plurinogorfo largo e alto entrou. Seu corpo era listrado das mais diversas cores. Sua cabeça não tinha olhos ou nariz, como eu já tinha visto no cadáver de Ostrede, mas uma faixa preta que parecia girar quando ele se movia.

- Eu faço um desafio: - propôs a rainha. - se você conseguir tocar o rosto de Prosfrustrede antes dele te imobilizar, você vai para nosso treinamento de combate.

Aceitei imediatamente com a cabeça, mas 'Seu' Josias mais uma vez intercedeu a meu favor.

- Prosfrus devia pelo menos assumir as formas de um menino! Assim é injusto!

A rainha concedeu e o plurinogorfo, em instantes, era do meu tamanho. Fiquei confiante, mas 'Seu' Josias continuou resmungando. Não devia ser desafio fácil.

O menino que se tornou o plurinogorfo era gordo como um mini-lutador de sumô. Comecei a me concentrar e olhei meu oponente.

No minuto seguinte, eu estava no chão. Não sei dizer o que aconteceu. Não tive tempo nem de vê-lo se aproximar de mim, mas agora estava deitado sobre ele. Seus braços enrolaram-se em meus braços e soube que era inútil resistir por ali. Concentrei-me em minhas pernas, ainda livres. Dei forte impulso e fiz um rolamento para trás. Acho que o peguei desprevinido. Seu corpo pesado não conseguiu me acompanhar e ele acabou, no desequilíbrio, soltando meu braço esquerdo. Ele ficou deitado e sua mão buscou minha cabeça.

Então foi a minha vez.

O tempo ficou lento e eu pude ver perfeitamente os movimentos de Prosfrus. Evitei seu golpe e girei sobre o braço direito, ainda preso. Ficamos frente a frente. Pus minhas pernas sobre as cochas deles, joelhos por fora, pés por dentro, imoblizando-o. O braço direito preso tornou-se vantagem, pois também anulava o braço dele. Levei meu braço esquerdo em direção ao seu rosto.

E foi a vez dele, novamente.

Ele me puxou pelo braço direito de uma forma que eu não previra e eu me desequilibrei. Num segundo, eu estava com a barriga no chão e ele em cima de mim. Soltei o braço direito e abracei com ele meu próprio pescoço um instante antes dele se jogar em cima das minhas costas.

Eu estava imobilizado. Não conseguia mexer nenhuma parte do corpo. As pernas dele travavam as minhas, o meu braço esquerdo dominado pelo dele.

Mas minha mão direita estava firme em sua bochecha. Ele se jogará em cima dela ao descer.

O plurinogorfo soltou uma exclamação de surpresa. 'Seu' Josias também. A rainha sorriu.

E eu fiquei em Paraíso.

quarta-feira, 9 de julho de 2008

Borboreal - Cap. 21

Enquanto os exércitos marchavam para a luz, alguns em silêncio funéreo, outros cantando cantigas alegres, nós íamos na direção oposta, cercados pelas criaturas que tinham longas antenas como de louva-deuses. Por fim, entramos numa tenda imensa e cheia de aglomerações. A sensação de atravessar a parede de bolha da tenda foi refrescante, como tomar um banho de mangueira no jardim.

Dentro da bolha, passamos por diversas cabanas e barracas, indo para o centro. Os 'antena de louva-deus' iam trocando informações roçando suas antenas nas antenas de outros pelo caminho e as passagens e portas foram sendo abertas, sem que uma palavra audível fosse trocada.

Enfim, entramos numa imensa cabana, de um material que me lembrou as colméias acinzentadas dos marimbondos. No centro, havia um círculo de cadeiras e, numa delas, sentava-se uma linda mulher, de cabelos que variavam entre o negro e o vermelho intenso, dependendo da posição de sua cabeça. Vestia uma bata multi-colorida e calças brancas. De uma tiara com um brilho azulado, em sua cabeça, descia um longo véu que passava por trás do encosto da cadeira e se derramava no chão, como uma cachoeira que derramava suas águas num tranqüilo lago. Seu nome era Anácris e ela era rainha do Paraíso.

Eu me postei na frente dela e me ajoelhei, cometendo minha primeira gafe. Todos me olharam como se eu fosse de outro planeta... 'Seu' Josias me socorreu.

- Está passando mal? - perguntou.

Levantei-me sem graça e me recompus. Então o plurinogorfo contou uma rápida versão da história à rainha.

- Você foi enganado por um menino de doze anos? - ela sorria e olhava para mim. - Mas você precisa voltar...

Tentei encará-la firmemente e minha voz, ao dizer 'não', saiu com a decisão que eu queria. Mas meus olhos se encheram de lágrimas.

- Como é seu nome? - ela perguntou, com suavidade.

O velho problema do nome. Odeio meu nome. Não quero dizê-lo. Quero outro nome. E por que não? Outro mundo, outro nome. Pensei em meus heróis, nas histórias que a babá contava à noite, para que eu dormisse e, por fim, fiz minha escolha.

- Viramundo. - exclamei. E diante do olhar de surpresa de 'Seu' Josias: - Aqui, meu nome é Viramundo.

terça-feira, 8 de julho de 2008

Borboreal - Cap. 20

Eu sorri, irônico...

- Não está reconhecendo a própria casa, 'Seu' Josias?

O plurinogorfo me soltou e olhou em volta. As sementes que as árvores haviam lançado no chão já eram pequenos arbustos. O sol brilhou mais forte. 'Seu' Josias me agarrou pelo braço e correu em direção às tendas.

- Nada bom! - ele repetia para si mesmo. Escondeu-se atrás de um rack com diversos objetos parecidos com grandes couves de couro. Vi um gigantesco hominídeo com ombros muito pontudos pegar um dos objetos, que se abriu como uma pequena asa triangular, de onde duas alças se soltavam. Ele prendeu as alças em cruz, no peito, e as puxou. A asa se fechou sobre ele, envolvendo seu corpo, moldando-se a ele, cobrindo os braços e as pernas e até a cabeça. Então, o imenso sujeito correu em direção a um batalhão próximo, que se organizava em forma de uma estrela. Duas pequenas criaturas correram e, com um grande pulo, instalaram-se nos ombros do gigante, enquanto ele se colocava em sua posição.

Em seguida, o batalhão inteiro começou a marchar.

'Seu' Josias ainda me olhava assustado. Eu estiquei a mão para tocar em uma das couves, mas ele me puxou de volta.

- Eu não acredito que você nos trouxe a Paraíso! - ele exclamou. - Vamos voltar agora para a Terra!

- Vá sozinho! - retorqui com firmeza. Ele viu a determinação em meus olhos. No momento seguinte, estávamos cercados por diversas criaturas com expressões desagradáveis.

- Quem são?! - uma das criaturas gritou.

- Sou Trestede. Espião da rainha em missão especial na Terra. Mas tive um pequeno contratempo...

As criaturas se entreolharam e um zumbido encheu o ar.

- Estão se comunicando com o líder... - disse 'Seu' Josias, mas agora eu conhecia seu verdadeiro nome.

Olhei de novo para o nascente. O brilho era cada vez mais forte, enchendo os campos de luz.

- O sol já vai nascer... - eu disse, pensando que seria meu primeiro amanhecer em Paraíso.

- Não é Sol nem estrela nenhuma... - corrigiu-me Trestede.

As criaturas também olharam em direção à luz. Uma delas me olhou nos olhos:

- Aquele brilho é Los.

segunda-feira, 7 de julho de 2008

Borboreal - Cap. 19

Tive que tomar fôlego para absorver o que vi. Sob a luz de um sol que nascia atrás de mim (não sei dizer se era o leste, agora que estávamos em outro planeta; pensando bem, nem deve se chamar sol a estrela que ilumina essa terra), vi correndo centenas de animais imensos, com o corpo grande e patas arredondadas, as costas e o lombo cinzentos e as patas esverdeadas. Suas caudas eram grandes e chatas e balançavam tensamente enquanto corriam. Já suas cabeças eram imensas e com fileiras de calombos na linha dos olhos saltados. As bocarras gigantescas tinham dentes que se encaixavam. Era um dos batalhões de crocofantes, eu soube mais tarde, e eles corriam em direção ao nascer da estrela nascente. Eles passavam à minha esquerda, a não mais do que 20 passos.

Algumas dezenas de hominídeos com asas voavam acima dos crocofantes. Eu reconheci suas formas: eram plurinogorfos, parecidos com o que vi morrer em frente ao Colégio Arnaldo, num planeta que ficava cada vez mais distante em minha cabeça. Tinham asas de couro, sem penas, mas não pareciam asas de morcego. Eram multicoloridas, assim como seus corpos. Gritavam palavras de ordem para os crocofantes e trocavam idéias entre si. Eu não tinha certeza se entendia o que falavam, apesar dos sons parecerem conhecidos.

À minha direita, bem mais à distância, encontrava-se uma floresta de árvores altas, com folhas azuladas e prateadas. Por baixo do estampido do correr dos crocofantes, a floresta parecia emitir um som baixo e ritmado, como o revolver de terra. Entre as árvores, via-se grandes quadrúpedes com vários chifres por todo o corpo, a ponto de lembrarem imensos porcos-espinho. Soube que se chamavam Cornocorpóreos. Num movimento sincronizado, vários deles saíram à frente das árvores e rolaram no chão, deixando milhares de buracos no solo. As árvores inclinaram-se para trás e, enquanto os animais voltavam para dentro, dobraram-se com força para frente, catapultando milhares - talvez milhões - de pequenas frutas que cobriram o solo revolvido pelos cornocorpóreos.

Bem à minha frente, haviam as tendas. Eram como grandes bolhas de sabão opacas, algumas solitárias, outras aglomeradas. Seres dos mais diversos entravam e saiam, atravessando as paredes que grudavam-se por instantes aos seus corpos e, ao finalmente se soltarem, voltarem com um leve balançar à posição inicial.

A movimentação era intensa: algo importante acontecia. Além dos crocofantes que continuavam a avançar em direção ao nascente, milhares de outros seres reuniam-se nos mais diversos agrupamentos, e eu pressentia que se preparavam para uma batalha.

Essa foi a primeira volta que dei em torno do corpo em Paraíso, antes de 'Seu' Josias me agarrar pelos ombros, assustado, e perguntar:

- Mas para onde é que você nos trouxe???

sábado, 5 de julho de 2008

Borboreal - Cap. 18

Quando o grito cessou, nós dois olhávamos para o chão. A atenção de 'Seu' Josias fixava-se no corpo do corcoromel, vazando gosma. O meu olhar simplesmente estava caído. Não se fixava em ponto algum. Buscava ver, no espaço entre mim e o chão, o tamanho de minha desilusão.

- Isso foi... Incrível... - disse o homem do saco, e realmente parecia não crer em seus olhos. Cutucou com os pés o pequeno monstro inerte e voltou seu olhar para mim.

Sua voz transmitia agradecimento. Ele sabia que eu salvara sua vida.

- E você devia ser meu guarda-costas... - eu disse, com um sorriso apagado. Ele sorriu de volta e me abraçou. No calor e aconchego, deixei minha desilusão fluir e ela ensopou a camisa de 'Seu' Josias.

- Há alguma coisa que eu possa fazer por você? Quer dizer, eu imagino que você nem queira mais ser meu amigo. Eu te usei e pus sua vida em risco... Como eu posso compensar? Mesmo que minimamente.

A voz dele era cheia de arrependimento. Senti que ele gostava de mim. Éramos mesmo amigos.

- Para ser sincero, eu acho que acreditei que não seríamos descobertos, aqui. Eu não achei que fosse um risco real... - ele continuou. E pediu desculpas várias e várias vezes.

- Por que você acha que ele atacou você e não eu? Acha que ele já sabia que eu não era o príncipe? - eu perguntei.

- Certamente ele sabia. Deve ter te seguido depois de matar Ostrede e ouviu nossa conversa.

- Você acha que o príncipe está bem?

- Preciso saber...

Acompanhei 'Seu' Josias até o telefone público mais próximo. Ele ligou para alguém, mas eu não escutei a conversa. Em seguida, ele me disse que o príncipe estava bem e que iam mudá-lo de planeta.

- Você vai embora, então?

- Vou... - ele disse, com voz triste. - Mas ainda devo ficar um ou dois dias, até decidirem para onde vamos...

- Hong Kong...

- Não... Hong Kong ainda é na Terra. Acho que eles vão...

- Eu queria conhecer Hong Kong.

Olhei para o plurinogorfo o mais inocente que pude. Ele cairia nesse golpe?

- Eu queria participar da mágica só uma vez. Ter essa sensação. Podemos ir para Hong Kong? Voltamos amanhã. Ou hoje a noite!

Ele ficou tão animado! Era como se visse a oportunidade de redenção por ter me enganado. Eu cheguei a me sentir envergonhado e quase desisti da idéia, mas foi mais forte que eu.

- Para viajar, basta aproveitar um pouco de luz, que tem grande velocidade. Um pingo de tempo é mais que o suficiente para irmos a qualquer lugar. Estaremos em Hong Kong em um piscar de olhos.

- E o desejo? - perguntei.

- Bom, parece que você tem desejo suficiente aí! - ele sorriu, vendo meu rosto se alegrar - Coloco um pouco de desejo manipulável e só é necessário que você o molde através do seu próprio desejo.

Ele abriu o saco e pegou um cubo, parecido com o que tinha me dado meses atrás e que continha fadas. Em seguida, pegou uma lâmpada parecida com aquelas velhas lâmpadas que contém gênios. - Luz! - ele exclamou, virando a lâmpada dentro do cubo, do qual ele havia aberto uma das faces. Uma pequena chama escorreu da lâmpada e ficou no centro do cubo, flutuando.

Em seguida, pegou uma ampulheta, agitou sua areia e deixou que três grãos caíssem na chama, por uma pequena torneira na base do objeto.

- Tempo! - Ele disse. Por fim, pegou um objeto estranho, que parecia mudar de forma todo o tempo. Ele deixou que eu segurasse o objeto e sua consistência era estranha. Parecia carne crua. Achei aflitivo e devolvi para ele.

Ele coçou o objeto com a unha e um pequeno orifício se abriu. Senti cheiro de enxofre enquanto ele enfiava uma agulha dentro do estranho saco, que saiu molhada de um líquido parecido com geléia de morango.

Ele colocou a agulha no centro da chama e fez diversos movimentos, alinhando os grãos de tempo e moldando a chama com a agulha cheia de desejo. Por fim, fechou a caixa.

- Agora, eu seguro em você e você deseja ir para Hong Kong. E, quando estiver pronto, eu te passo a caixa, ok?

Eu estava pronto. Peguei a caixa da mão dele e o mundo desapareceu.

Foi rápido. Não foi imediato, como eu pensei que seria. Tudo ficou escuro e eu posso jurar que vi passar o final de nosso universo. Acho que se a distância fosse menor, seria instantâneo.

Mas viajamos para outro universo.